quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Bicicleta


Demoraram dezenove anos para aquele garoto aprender a andar de bicicleta. Não que fosse uma situação difícil de ser realizada, e não foi. Bastou o momento certo, na semana certa, na rampa certa e ele deslizou no asfalto como uma criança de oito anos após descobrir o fascínio das duas rodas.
Passaram-se semanas e esse aprendiz foi evoluindo na prática ciclística. Já andava no meio dos carros, nas passagens estreitas e rodava por tudo quanto é lado, com sua querida e nova companheira.
Mas eis que chega uma noite daquelas. Ele, com uma vontade absurda de chegar em casa, corre afoitamente sob a lua que iluminava a pista do aterro do Flamengo, sua estrada predileta. Como diz o ditado, a ‘’primeira vez a gente nunca esquece’’.
O primeiro tombo foi inesquecível. O rapaz realizou um daqueles vôos de dar inveja aos aviões mais modernos. Flutuou alguns segundos e se espatifou nas pedras portuguesas que construíam o chão por onde iria passar.
A noite estava solitária. Ele, todo machucado no chão, resmungava incrédulo. Eis que chega uma viva alma correndo em sua direção.
''Um mendigo! Além de cair ainda vou ser assaltado. Só era o que me faltava... - pensou ele, enquanto martelava um jeito de reagir a provável ofensiva.
A silhueta seu aproximou, chegou mais perto e ofegante perguntou de forma estupefata, atropelando as palavras: '' Tudo bem com você? Você se machucou? Tenta ir ao hospital, o ferimento tá sangrando e pode te deixar doente. ''
O menino, não o respondeu. Ficou boquiaberto com sua falta de sensibilidade e preconceito. Agradeceu sem graça o gesto do pobre coitado e rumou para seu lar, ainda sentido com o que fizera.
Semanas depois, o aprendiz de duas rodas estava na Marina da glória, andando com seu veículo de forma tranqüila. Com a brisa marinha batendo em seu rosto, ele ouvia suas músicas prediletas no rádio de seu celular.
Tudo na perfeita harmonia, até que resolveu passar para a pista principal, situação normal, já que teria que descer um degrau.
Seria normal, caso este não tivesse feito uma lambança no pequeno meio fio que separava o degrau da pista.
Pela segunda vez na vida, o projétil foi lançado no asfalto sem dó nem piedade. A gravidade é cruel. Está certo que foi com menos intensidade, já que não vinha correndo como da outra vez, porém a situação patética de cair na frente da Marina é algo que dói bastante.
Eis que sua primeira reação ao tentar se levantar foi olhar para o lado e lá ele observou um pequeno grupo - talvez uma família da baixa burguesia carioca, ou alta, não se sabe - e de lá ele acompanhou uma série de gargalhadas histéricas.
Ao perceber que o garoto os observava de longe, o chefe da família redigiu o seguinte comentário para o rapaz: '' Eita, não sabe andar de bicicleta, não?''
O garoto, revoltado com a falta de cordialidade, retrucou com uma voz serena: ''Poderia ter me ajudado ao invés de fazer piadinhas''. O semblante da família fechou.
Após isso, uma dupla de homens que assistia a cena atrás da família perguntou ao garoto se estava bem. Este respondeu com um sinal positivo e disparou pela pista do aterro, ainda lamentando.
Ao pedalar ele ia pensando na voz do mendigo que o acolhera da outra vez e daí tirou a conclusão que o caráter não veste roupa, não tem classe social, não precisa ter casa ou nome.

As pessoas realmente são surpreendentes.

Mais tarde, no turbilhão de pensamentos pós acidente, ele acabou lembrando de outra frase, esta estampada no paredão do quartel de triagem, onde havia se alistado tempos atrás: "A verdadeira medida do caráter de um homem é o que ele faria se soubesse que nunca seria descoberto."

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